Na mesa de decisão: “Writing é Design”!

UX Mania
10 min readApr 26, 2021

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Júlio Lira — Foto: divulgação

O cearense radicado em São Paulo, Júlio Lira, é um ator com saudade dos palcos, que já se apresentou como advogado, também tem formação em Ciências Sociais e abraçou com paixão outro ofício: UX Writer — ou Content Designer — termo que ele acha que tem mais a ver com a função. “(…) No Content Designer a parte do Design tá mais evidente”, diz.

Júlio é uma inspiração para profissionais em transição de carreira que precisam lidar com seus medos e inseguranças. Ele é uma prova viva de que dá para ultrapassar os obstáculos da vida, apesar das dificuldades. “Não tenha medo da mudança e, se o medo vier, abrace seu medo. Abrace a síndrome do impostor, pegue leve com você”, aconselha.

Alguns dos pontos discutidos foram o papel do writing no mercado e na sociedade e a pressa das empresas em lançar soluções, diversidade de backgrounds, maturidade na profissão, sobre como “desmascarar o juridiquês”, entre outras coisas.

Você redesenhou o fluxo da sua vida — mudou de área e de cidade. Como foi esse processo?

Eu sempre tive um pé na comunicação. Na época em que eu estava decidindo qual faculdade cursar eu pensava em Psicologia, Ciências Sociais e, principalmente, Jornalismo e Publicidade. Eu já mexia com Photoshop, escrevia um blog. Entretanto, me veio Direito também.

Eu me cobrava para ser um bom profissional porque tinha uma responsabilidade por aquilo que eu fazia na advocacia, mas eu não era apaixonado. Eu me questionava: qual é o meu propósito, por que isso não está dando certo para mim?

Chegando aos 30, percebi que precisava mudar. No começo de 2019, eu encerrei o contrato com o escritório que eu trabalhava e me mudei para São Paulo com a cara e a coragem. Desde o primeiro momento eu comecei a vasculhar a Internet atrás de conteúdo e comprar todos os livros que a grana me permitia comprar. Eu queria tentar correr atrás do “prejuízo”.

Sobre mudar: só a primeira vez que é difícil. Depois que você atravessa a rua, você já pode atravessar uma avenida, atravessar uma ponte, um Oceano

Eu nunca tinha feito uma grande transição e sempre tive muito medo e insegurança. Hoje, se eu quiser mudar de carreira, de cidade, de qualquer coisa, eu vou estar muito mais tranquilo para isso, porque mudar faz parte da vida.

Eu fui contratado pela Mutant para trabalhar com URA e me apaixonei por Design Conversacional, por levar diálogos claros e atrativos para o usuário. Em meados do ano passado eu entrei em outra empresa para começar essa área lá.

Um grande aprendizado de como você vem de uma migração e assume a responsabilidade de começar uma área nova, de evangelizar o UX Writing para uma galera que até então pouco ou não conhecia. São desafios e a cada dia que eu vivo esses desafios é um dia a mais que eu percebo que estou no lugar que eu quero estar.

E nessa nova área, quais foram as sensações?

A paixão que eu não tinha no Direito eu finalmente passei a ter e também acabei descobrindo que o que eu fazia no Direito tinha um pouco de Experiência do Usuário, de UX Writing, principalmente.

Por exemplo, quando eu estava escrevendo uma petição, sempre imaginava esse cenário: o juiz que está lendo minha petição tem outras 300 petições para ler no mesmo dia.

Como eu posso entregar para o juiz uma petição que seja mais digerível, atrativa, que ele bata o olho e tenha vontade de ler? Eu trabalhava Hierarquia da Informação, Negrito, Bullet List, Gráfico, fazendo um texto que me desse alguma vantagem no processo

Eu fiz um curso de UX Writing na Belas Artes com a Ariana Dias. Foi uma semana de imersão no UX Writing e mais uma vez eu pensei: “caramba, era o que eu queria”. Trabalhar com texto, com comunicação, nessa nova área, pensando em Tecnologia, em Inovação,

Acabei me apaixonando completamente por UX Writing e também por saber que Writing, como o Bruno Rodrigues sempre fala, tá dentro do guarda-chuva de pesquisa. Aquelas skills que eu tinha das Ciências Sociais, da iniciação científica, afloraram de novo. E a coisa aconteceu a partir daí.

“Depois que você atravessa a rua, você já pode atravessar uma avenida, atravessar uma ponte, um Oceano” — Foto: Vitor Martins.

Você pensou em estudar Design lá atrás, antes de fazer sua graduação, e com o UX Writing essa ideia se cristalizou. Por que não enveredou para a área de tecnologia no começo de tudo?

Na época da graduação, a gente estava começando a pensar no Iphone, os primeiros modelos estavam sendo lançados. Eu nunca cheguei a pensar em cursar Design, não existia um curso mais elaborado de Design. Eu pensava em ir para outras áreas, como Jornalismo e Publicidade. Quando a gente pensava em Tecnologia, o que tinha era TI (Tecnologia da Informação). Era um ambiente muito distante para mim.

Eu não queria ser Desenvolvedor, circular em um ambiente mais matemático, mais exato. Meu pé sempre foi nas Humanas. E eu não fazia ideia do que era UX

Então, há uns 4 anos, eu estava em uma festa de aniversário e uma amiga tinha um livro na mão — “Guiados pelo Encantamento: O método Mercedes-Benz para entregar a melhor Experiência do Cliente” — de Joseph Michelli. Aí foi meu primeiro contato com UX. A partir daquele momento a palavra começou a ser mais familiar pra mim e então fui descobrindo e querendo saber cada vez mais do assunto.

Como você avalia a inserção da disciplina de UX Writing no Direito, área que você atuou e que usa uma linguagem tão excludente?

Você usou a melhor palavra: EXCLUDENTE. O Direito é uma área de elevadores privativos para desembargadores, de vossa excelência, de muita pompa e elitismo. E a decisão de ser excludente é de quem comanda a estrutura jurídica do país.

Eu vejo um movimento bem interessante de democratização da linguagem e quebra do “juridiquês” rebuscado, que não informa, não é acessível ou amigável. Um movimento por uma comunicação que seja mais assertiva e vá direto ao ponto.

Está acontecendo uma mudança, por exemplo, nos documentos legais, termos de uso e política de privacidade. O mercado começa a perceber que há valor em você “desmascarar” aquele “juridiquês” e entregar um texto que realmente faça sentido para o usuário e o leve a entender o que está contratando.

Inclusive, tem um movimento super legal que é tocado pela advogada Danielle Serafino, que se chama “Entendo, Logo Concordo”. Para você concordar com algo, você precisa entender. E para você entender, aquilo precisa ser compreensível, de fácil entendimento.

Eu acho massa que o Direito esteja começando a olhar para isso e olhando com cada vez mais força. O trabalho do writer está aliado ao trabalho do juiz, do advogado, do promotor, do defensor público. É um trabalho de muitas mãos para entregar um texto realmente compreensível, leve e interessante.

Para que a Constituição seja ensinada, ela precisa ser fácil de ser interpretada. Por isso, eu defendo o movimento por uma Constituição para todos — que seja realmente democrática, inclusive no seu texto

O Direito não precisa ser pesado. Muito do que a gente falha enquanto país vem da falta de conhecimento da nossa Constituição, dos nossos direitos e deveres. Se a Constituição fosse fácil de ser lida e fosse ensinada nas escolas, a gente teria uma outra base como cidadão.

O que explica a diversidade de backgrounds que a UX abraça?

O mercado tá pulsante, com cada vez mais vagas abertas e olhando melhor para a área. É uma longa crista da onda — um mercado que ainda vai crescer muito. Toda empresa hoje é uma empresa de Tecnologia ou em algum momento vai ser.

A área de UX é muito vasta nos pontos de contato. O meu background em Direito foi útil quando eu precisei montar a política de privacidade da empresa que eu trabalho, a edtech Estratégia Educacional.

A diversidade de mindsets, de pensamentos e posturas dentro de UX é muito rica para a própria área. Se você tem muitas softskills e hard skills, isso vai ser bom para formar o profissional de UX que você vai ser. Quanto mais diverso um time de UX é, mais ampla é a visão sobre o usuário — já dizia Don Norman

Se eu estou trabalhando com um produto digital do ramo financeiro, é legal que venha alguém desse background bancário-financeiro, assim como venha alguém com um background das Ciências Sociais, alguém também com um background do Jornalismo, da Moda.

O hexágono de tecnologia — imagem: starline/freepik

O mercado parece dar preferência por coisas mastigadas. Como “desmastigar” o mercado?

Eu acho que às vezes o mercado pede coisas mastigadas, porque o mercado tem pressa. Ou não tem a maturidade para entender que um processo completo, profundo, é um processo necessariamente complexo. Um processo com muita investigação, tentativa, hipótese, dúvidas. E que vai quebrando tudo isso, testando, validando e depois aparecem novas dúvidas. É algo cíclico.

O duplo diamante não é uma coisa bonitinha. O Design Thinking é um vai e volta constante. E às vezes o mercado não tem tempo para isso e a solução precisa ser implementada em duas semanas

Algumas coisas vão ser mastigadas mesmo e a gente precisa ter maturidade para entender isso. Você não vai conseguir explorar a semântica do usuário a fundo. Porém você vai conseguir fazer um bench, uma pesquisa rápida de guerrilha e entregar aquilo que você tem.

Nós fazemos parte do processo de levar mais entendimento ao mercado e cada bandeira que a gente levanta é alguém mais que a gente ganha como aliado na nossa luta. E qual é a nossa luta?

Precisamos de um pouco mais de calma para que os processos ocorram de uma forma mais completa, de ponta a ponta

Tem um outro ponto: as empresas vão cada vez mais perceber que coisas que não são mastigadas são coisas que têm menos retrabalho. E que no final das contas trazem um retorno financeiro maior.

Você e muitas pessoas da área falam que “Writing é Design”. O que significa essa ideia?

Quando a gente fala que “Writing é Design” estamos tentando levantar uma bandeira de que o writer precisa ter lugar na mesa de decisão de Design. Assim como o Product Designer pensa em fluxo e na experiência, a gente também tem que se empoderar cada vez mais disso. Criar desde o momento zero, do Discovery ao fluxo, pensar na experiência.

O designer está muito ligado ao visual, mas a linguagem, que também pode ser visual, também está dentro do produto digital. Se a gente tá pensando no texto que vai naquele lable, botão, naquele estado vazio, em qualquer tela, qualquer interface, precisamos oferecer uma solução de Design.

Eu acredito que, se estamos usando estrangeirismo mesmo, vale a pena usar mais Content Designer do que UX Writer. Isso porque no Content Designer a parte do Design tá mais evidente

Design é balancear a racionalidade da entrega da solução efetiva e o sentimento para criar propósito e identificação, para fazer com que aquilo valha a pena para o usuário.

O trabalho de escrever também é isso. É pensar em clareza, pensar em concisão e também no propósito. Tudo isso é Design. Nós fazemos Design.

Quais são seus planos para o futuro?

Pensando no futuro, eu me vejo explorando novas nuances dentro do Writing. A minha ideia é continuar trabalhando com isso e levar os skills de pesquisa, de UX Writing, para uma área mais estratégica. Eu acho que em algum momento meu caminho vai acabar chegando perto de um gerenciamento de produto.

Acredito que vai ser muito importante ter mais Product Managers e Product Owners que tenham essa visão mais elaborada também de pesquisa, de Writing, e não só de negócio — uma visão aprofundada em torno de todo o framework de UX

Cada vez o mercado está entendendo a importância de uma comunicação dialógica, fluida, consistente e concisa. Não só para o produto digital em si, mas para toda a cadeia de comunicação daquele produto. Inclusive, pensando no básico de email, atendimento, a maneira como o suporte SAC conversa com a pessoa.

Enfim, toda comunicação consistente, pensada para orientar, para guiar o usuário diante de algum objetivo — do negócio, do usuário. Isso vai fazer cada vez mais sentido.

Qual seu recado para quem quer ingressar em UX Writing?

Não tenha medo da mudança e, se o medo vier, abrace seu medo. Abrace a síndrome do impostor, pegue leve com você. Eu to dizendo tudo isso olhando para um espelho. São coisas que eu passo no dia a dia e são coisas que a gente sempre vai passar.

Entenda que as coisas são árduas e complicadas, só que quando colocamos paixão a gente foca no objetivo. Pode ser difícil, porém com muita dedicação e estudo a coisa vai acontecer.

Não se pode esquecer que o writing não termina na palavra. Ele vai desde o começo, da investigação, da exploração e vai até as evoluções futuras da solução, do produto. O writer precisa estar inserido nesse ciclo.

É muito importante que se dedique a fundo no writing, mas que tenha uma boa noção das outras áreas e saiba defender com bons argumentos as soluções de texto quando estiver em uma conversa com um stakeholder, com um PD (Product Designer), um PM (Product Manager), ou com desenvolvedores.

A gente consegue defender muito bem com estudo, com base teórica sólida por trás dos argumentos, e principalmente com pesquisa. Por isso sempre bato na tecla de que Writing tá dentro do guarda-chuva de pesquisa.

Todo writer é curioso e, em algum momento, um bom pesquisador.

O writer tem que ter a curiosidade desse menino — Imagem: Getty Images

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Ideias, descobertas, engajamento, transição. Um blog sobre UX Writing, Design, Comunicação, Música e outros assuntos instigantes. Por Felipe Madureira.